A seleção do vocabulário
O instrumento principal daquele que se propõe a escrever, é a palavra.
Eis a questão: qual é a verdadeira importância da seleção das palavras na construção de um texto?
Há quem diga que os vocábulos formais propostos pelo dicionário estão caindo em desuso e só são utilizados de forma retrograda por boçais egocêntricos que querem demonstrar domínio da “linguagem culta”, e que a melhor maneira de escrever é sendo o mais simplista possível, a fim de que todos entendam o que estamos falando, sem a necessidade de pensar e refletir.
Mas, será que vale a pena empobrecer o vocabulário em nome da acessibilidade? Creio que não, pois pode resultar em perda de precisão e profundidade na mensagem que o autor deseja transmitir. No cotidiano, a flexibilidade é essencial. O domínio de um vocabulário amplo permite transitar entre registros formais e informais com naturalidade. Saber quando empregar determinado termo é tão importante quanto conhecer seu significado. Mas, na literatura, a escolha vocabular é ainda mais significativa. Cada palavra carrega um peso estilístico e contribui para a construção da atmosfera narrativa.
A busca pela linguagem mais acessível, por mais que possa parecer uma tentativa de democratizar o entendimento, pode, paradoxalmente, limitar a riqueza de significados e imagens que a literatura pode nos oferecer.
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A partir da escolha das palavras, o autor é capaz de moldar a essência de sua obra. Ao selecionar vocábulos para compor um texto literário, o escritor deve ser capaz de perceber, com acuidade, os múltiplos matizes que uma simples palavra pode evocar. A suavidade de um adjetivo, a contundência de um verbo, ou até mesmo o ritmo de uma frase, tudo contribui para a experiência estética que se deseja proporcionar ao leitor.
Assim, a seleção vocabular no texto literário é mais do que uma questão de estilo, é uma questão de intenção. Cada escolha deve ser feita com consciência, sabendo que o vocabulário não apenas descreve a realidade, mas também a interpreta e, em muitos casos, a reinterpreta. Em vez de buscar o simples, o escritor deve se atentar para o que é necessário: a escolha que vai além da facilidade, buscando o que melhor traduz sua visão do mundo e do sentimento humano.
A arte literária nos exige mais do que a comunicação funcional – ela nos exige a entrega de uma experiência sensível, algo que ressoe nas entrelinhas, que desafie, que provoque, e que, acima de tudo, deixe uma marca. E essa marca vem, invariavelmente, das palavras escolhidas com sabedoria e precisão.
A obra Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, oferece exemplos profundos da eficácia da escolha vocabular na construção da narrativa. No romance, as palavras não apenas comunicam as ações dos personagens, mas também revelam suas complexidades internas, suas contradições, suas lutas existenciais. Quando Dostoiévski descreve os personagens utiliza um vocabulário preciso para capturar as essências de suas personalidades tumultuadas.
Por exemplo, quando Fiódor Pávlovitch Karamázov é retratado, a escolha de palavras como "vulgar" e "depravado" não são meras descrições físicas ou comportamentais, mas revelam a natureza moral de um homem atormentado pela corrupção interna. Ele não é apenas um personagem desonesto, mas alguém cujas ações transbordam de uma imoralidade quase palpável, refletida na dureza e acidez das palavras que o definem. Já no caso de Aliócha Karamázov, a escolha de palavras suaves e ponderadas, como "pureza", "bondade" e "espiritualidade", constrói um contraste claro entre ele e o pai, trazendo à tona a sua natureza quase angelical e sua busca pelo divino. O uso de adjetivos e verbos que evocam serenidade e calma reflete sua jornada de fé e busca pela verdade, o que adiciona uma camada de profundidade emocional ao seu caráter. Em um momento crucial do romance, quando Ivan Karamázov se entrega a um desespero filosófico profundo, suas palavras ganham um peso existencial único. Ele descreve a dor e a injustiça do mundo com um vocabulário sombrio, como quando diz: "não é Deus que não aceito... é o mundo criado por ele”. A escolha desse tipo de linguagem filosófica, pesada, é fundamental para mostrar o abismo moral em que Ivan se encontra e como sua visão do mundo o leva à rejeição do divino.
Cada palavra que Dostoiévski escolhe para os diálogos e monólogos de seus personagens é carregada de camadas de significados, muitas vezes se referindo a questões metafísicas e psicológicas que vão além do que é dito diretamente. Isso torna Os Irmãos Karamázov uma obra em que o vocabulário não só transmite as intenções dos personagens, mas também serve como uma ferramenta para revelar a luta interna que se passa dentro deles, entre a fé e a dúvida, a redenção e a condenação.
O vocabulário não é apenas um conjunto de palavras disponíveis para uso. Ele carrega camadas de significado, nuances históricas, além de indicar a identidade do falante.
A linguagem evolui, mas a riqueza vocabular nunca perde sua importância, para confirmar isso basta olharmos para os grandes nomes da literatura. Ler, escrever e refletir sobre as palavras é fundamental para expandir nossa capacidade de comunicação. Afinal, o vocabulário não é apenas um reflexo da língua — é também um espelho do pensamento.
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Fonte da obra citada: Dostoiévski, Fiódor , 1821-1881 Os irmãos Karamázov - São Paulo: Editora 4, 2012 (3ªEdição).
É sempre uma aula ler seus textos 🥰
Obrigada pelo texto! Magnífico!🥹